sábado, 17 de julio de 2010

Gingado Malandro

Revista SEMEAR 6

MASCULINIDADE E MODERNIDADE EM EÇA DE QUEIRÓS
José Carlos Barcellos - UFF
...............................Nas décadas de 30 e 40, os sambas narram segmentos de cotidiano nos morros e nas novas favelas que foram surgindo, referindo-se muitas vezes a tipos sociais como o malandro, o valente, o malfeitor. O teatro de revista, desde a última década do século passado, os esquetes humorísticos do rádio e, posteriormente, nos anos 50, da televisão, as crônicas dos jornais populares, a novela, enfim, a mais variada produção cultural fixou, entre os anos 20 e os 50, alguns desses tipos que constituíram essa tradição. Encontra-se lá toda uma narrativa que ainda hoje "faz sentido", é "familiar" e que até ultrapassou os limites da tradição da cidade para se incorporar ao vocabulário brasileiro. A figura do "malandro" é, de todas, a mais significativa, abrangente e complexa, e também a mais persistente.


Dei-me conta do quanto ainda desconhecemos das trocas e interações das imagens mínimas que constituíram esse universo de sentido que chamamos de "malandro", quando viajava, em 1989, de trem, de Lisboa a Paris. Em minha cabine instalaram-se um português de Lisboa, que jamais veio ao Brasil e nem parente tem por aqui, e um uruguaio que também não nos conhecia. A tantas, o lisboeta me perguntou de qual bairro gostara mais em sua cidade. Respondi-lhe que me fascinara o Bairro Alto, onde reencontrara aspectos do que imaginava ter sido o Rio antigo. Ele comentou rapidamente, rindo, que lá, até há pouco tempo, era a área dos "rufias". Fiz-me de desentendido e perguntei-lhe o que eram "rufias".
Ele levantou-se na cabine, e gingando feito um malandro capoeirista tipicamente carioca, que ele nunca encontrou, me mostrou a ginga dos antigos rufias do Bairro Alto. Fiquei sabendo também que alguns se vestiam com camisas listradas, que portavam navalhas e exploravam o lenocínio. Eram perigosos, matavam facilmente e vi-viam tendo problemas com a polícia. O uruguaio falou também "de los rufiones" de Montevideo, mas deixou claro que não andavam balançando, eram "machos", duros, rígidos, brilhantinados, o que deixava claro que estava por fora do que eu e o português partilhávamos naquela conversa. Fiquei matutando sobre, e me dei conta de que o "malandro" carioca pode ter vindo de Lisboa, dos fadistas e dos rufias, e não apenas dos negros libertos e brancos pobres do Segundo Império, como muitas vezes se pensou. Esses apenas reinvestiram numa tradição, cujas matrizes, perdidas, podem recuar para muito mais tempo antes. Os tipos literários do romance picaresco desenvolvem algumas das principais representações desse estilo de vida individualista pré-moderno, intersticial, que a língua italiana fixou no termo malandrino, de onde se originou a palavra portuguesa. Há condensações variadas entre o malandrino italiano, o mandrião espanhol, o patife português, o "apache" e suas variantes: o malin, o coquin, o vaurien e o vagabond francês, o vagabundo simplesmente (do antigo latim, vagativu = vadio): todos são representados por atributos que condensam os atributos de ocioso, de insolente, de maroto, de esperto, de velhaco e, no limite, de canalha e de bandido.
http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/6Sem_16.html