jueves, 4 de agosto de 2011

Julgara-se ver os lutadores e dimacharios dos sangrentos jogos romanos disputando no circo a taça de ouro, ou os applausos barbaros do povo rei.


Vieira e o hollandez recuárão do mesmo impeto, faiscando-lhes lume os olhos, para se assaltarem de novo. Desta vez, porém, cada qual calculava o golpe e a astucia, para que o encontro fosse decisivo, pois que delle dependia, não só a propria vida, mas a vida do companheiro que tinha debaixo dos olhos, lutando e agonisando como elle. Era uma posição suprema, que, teatralisando as faculdades do» contendores, as multiplicava por todos os gráos da sua anciedade.

Nisto, a cadêa dos dous braços de Ayres rebentou, soltando-se as mãos que lentamente havião desenlaçado pelo impulso succesivo e irresistivel. O hollandez soltou um grito de triumpho, Ayres uma imprecação terrivel. Dahi por diante a sua vida e a de Vieira talvez estava na mão daquelle inimigo que se levantava, da longa compressão e do propio da derrota, vingativo e armado.

O primeiro movimento do hollandez foi apoiar-se unicamente na mão direita, e, ainda curvo como estava, levar a esquerda á adaga que tinha no cinto. Foi o que o perdeu. Ayres, rapido como o pensamento que adivinhava a idéa e a imprudencia do contrario, acudiu com a mão direita a fixar contra o punho de ferro da adaga a mão do seu inimigo, não só para o impedir de tirar a arma do cinto, senão para lhe esmagar ali os dedos se pudesse; ao mesmo tempo com a esquerda le trahia a si a direita do hollandez, em que este firmava o corpo, porque, se el perdesse o tal apoio, resistia de novo tremendo abraço do mosqueteiro, que no intervallo ganhára novas forcas. Para melhor se comprehender este lance cumpre não perder de vista que o mosqueteiro, lançado de costas, tinha livres os braços ambos, ao passo que o holladez, subjugando-lhe meio corpo com os joelhos, carecia de apoiar na terra uma das mãos, ao menos para não descer outra vez á posição horizontal, que paralysaria de todo, e conservar o gráo de curvatura que depois de tantos esforcos obtivera.

Ayres, pois, com uma das mãos segurava a do seu contrario sobre o punho da adaga que este tentára arrancar, e com a outra procurava afastar da linha vertical a que elle apoiava no chão, porque assim o faria perder a vantagem ganha. Tudo estava em saber se o hollandez conseguiria arrancar do cinto a adaga: os esforcos que tinha de empregar, para conservar o braço direito na sua posição vertical, affrouxavão sensivelmente o impulso que precisava dar á mão da adaga. Ayres, pelo contrario, concentrava neste ponto todas as suas forças, porque, se o hollandez, cedendo á dor, largasse a adaga, fiarlhe esta arma ao alcance, e, na situação em que se achava, era porventura a salvação.

O hollandez gemeu daquelle novo genero de tortura. Um suor frio aljofarava-lhe a extremidade dos cabellos hirtos. Sentia como um véo que lhe toldava a vista, condensando se sob a pressão furiosa de Ayres. Nos labios entreabertos, mostrando nos dentei cerrados, havia a dupla pressão do odio e do martyrio. E Ayres apertava, apertava, triturando os dedos do hollandez entre os copos da adaga e a mão delle, não menos rija e angulosa ; apertava, apertava, como se em tenazes de ferro suffocara contra o ferro a ultima esperança de um inimigo implacavel. .

A sede de vingança immediata cegára o hollandez. Se elle se erguesse promptamente, achar-se-hia armado e fora do terrivel alcance do mosqueteiro, antes que este pudesse ser senhor de si.

— Animo, Ayres — bradou Vieira, que tudo observára em um relancear de olhos, sem todavia perder de vista o seu adversario pessoal.

O hollandez, que combatia o mancebo, julgando este distrahido, Caihiu sobre elle. Vieira esperava o ataque.

Dando vivamente um passo de lado, o hollandez só feriu o vacuo: ao mesmo passo a adaga do mancebo desapparece» atê ás guardas no lado desarmado do infeliz, que cahiu, sem um suspiro, ao pé do companheiro que lutava, salpicam! o-o de sangue e tomando-o de horror

— S. Jorge pelos Brasis! —gritou o mancebo triumphante, correndo a Ayres.

— Victoria l — bradou este, mostrando a adaga arrancada ao hollandez, que formalmente a largára, pendendo sobre o lado quasi, desmaiado de dor.

Este clamou plangento na sua lingua:

— Dai-me a vida, e rendo-me l

Vieira comprehendeu-o pela ansia e pelo gesto, e accudiu. — Não derrameis sangue inutil, Ayres l Este homem é prisioneiro.

— Prisioneiros sois ós ambos, se quereis salvar as vidas — bradou uma terceira voz, em hollandez.

"Os nossos dons amigos, voltando-se, adivinhárão a significação destas palavras pela altitude do inesperado interlocutor.

Era o mosqueteiro, que aportára «cima do ponto em que Vieira subira, e que, se os nossos leitores bem se lembrão, conservava o seu mosquete em estado de servir.

Effectivamente o hollandez, a pouco mais de cincoenta passos, tinha o mosquete armado e o morrão proximo á escorva. Procurando Vieira atravez do reato, pressentira ali o rumor da luta, e accorrèra a tempo de poder intervir ainda. Era mais um lance nesta luta complicada e quasi interminavel.

O outro hollandez, que se julgava .perdido, reanimou-se á voz do companheiro, e, lançando mão ao mosquete, que ainda conservava traçado, poz-se em pé de um só pulo.

A posição dos nossos dous amigos,que passára por tantas alternativas, parecia agora desesperada de todo.

— Rendei-vos — gritou de longe o terceiro hollandez, assoprando expressivamente o morrão do mosquete.

FUENTE: PAG 47-48:Calabar: Historia brasileira do seculo XVII.José da Silva Mendes Leal (1818-1886.).Typ. do Correio mercantil, 1863

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